Clínica Feminista: a importância dos estudos de gênero no campo da saúde mental
- Patrícia Azevedo
- 13 de jun. de 2023
- 6 min de leitura
Expandindo a sensibilidade e efetividade da clínica por meio da incorporação dos estudos de gênero.
No campo da saúde mental, questões de gênero sempre estiveram presentes, mas foram historicamente usadas para reforçar estruturas opressoras e dominadoras sobre pessoas pobres e mulheres. A experiência de loucura e sofrimento tem sido estudada na cultura ocidental por séculos, mas foi somente no final do século XVIII, com a criação do conceito de doença mental e o surgimento da Psiquiatria, que o "louco" se tornou objeto de estudo e tratamento, sendo excluído de outros grupos e confinado em manicômios. Nessa perspectiva, a "doença mental" foi objetivada como falta de razão. De acordo com Zanello, a voz das mulheres foi especialmente silenciada nesse processo, sendo que "a história da psiquiatria é uma história dos discursos de psiquiatras homens sobre mulheres loucas" (2018, p.20). Assim, os manicômios se tornam símbolos de instituições criadas por homens, tais como o casamento, igreja, leis e família, que confinam e enlouquecem as mulheres.
A história da psiquiatria é marcada por uma abordagem descritiva e classificadora das supostas patologias psicológicas, baseada mais em valores morais do que na ciência. A classificação de doença mental também era distinta entre homens e mulheres, sendo que os homens eram considerados adoecidos ao se desviarem de seus papéis de trabalhador e provedor, enquanto as mulheres eram consideradas loucas por questões relacionadas à sexualidade (sexo fora do casamento, não contida, com fins não reprodutivos) e à maternidade (Zanello, 2018). Além disso, o discurso científico validou a ideia de que o adoecimento das mulheres era causado por uma condição física, ou seja, uma predisposição biológica para a loucura.
Na década de 1950, com a introdução de neurolépticos e a progressão da classificação de transtornos mentais, consolidou-se uma tendência na sociedade de patologizar o que é considerado normal. Esse processo era representado pela presença ou ausência de sintomas e mediado pelos manuais de classificação. No entanto, essa abordagem desconsiderava aspectos importantes ligados ao gênero, como a expressão do choro, permitida para as mulheres e proibida para os homens, o conflito entre a subjetividade do indivíduo e as expectativas dos papéis de gênero, bem como a influência dos valores e crenças morais do próprio médico, que atribuía o diagnóstico. Como resultado, o diagnóstico de transtornos mentais tornou-se uma questão de julgamento moral e não uma análise imparcial baseada em evidências científicas.
Ao longo do tempo, a Psiquiatria e a Psicologia se consolidaram como ciências que reforçavam a ideia da divisão tradicional de papéis entre homens e mulheres na sociedade. Essa característica, além de reforçar as construções históricas de gênero, consolidava a manutenção da distribuição de papéis entre homens e mulheres e garantia a perpetuação da ordem social estabelecida. Ao mesmo tempo, essa postura situava médicos e psicólogos como defensores da ordem social, dando-lhes o poder de determinar o que era considerado normal ou patológico, em detrimento da abordagem revolucionária e libertadora que buscava questionar e desafiar as normas culturais opressivas, especialmente no que se refere à moral sexual, perpetrada por Freud (CECCARELLI, 2017).
Zanello (2018) apresenta uma visão inovadora sobre os transtornos mentais, argumentando que eles são "criações culturais com efeitos performativos". Em outras palavras, a cultura define o que é considerado como sofrimento mental e as terapêuticas destinadas a tratar esses problemas também são influenciadas pela cultura. É importante ressaltar que essa perspectiva não nega a importância da biologia, mas sim destaca a importância da interação entre processos biológicos e o ambiente social na definição de transtornos mentais. A psiquiatria, por sua vez, desempenha um papel importante na normalização, estabelecendo padrões para o comportamento considerado aceitável e classificando aqueles que divergem desses padrões como transtornos mentais. Isso incluiu, por exemplo, a longa história da consideração da homossexualidade e da transexualidade como doenças.
Ao examinar a relação entre gênero, poder e as ciências da psiquiatria e psicologia, é evidente que a exclusão e a invisibilidade são traços que caracterizam tanto a história quanto o sofrimento das mulheres (MOMBERG & GARCIA, 2019). Enquanto do homem "normal" é esperado desempenhar o papel de provedor da família e de trabalhador dedicado, exemplificando uma vida virtuosa e longe de vícios e "excessos", as mulheres são responsáveis pela tarefa crucial da reprodução e conservação da família e do lar. Embora muitos avanços tenham sido alcançados em termos de direitos políticos, econômicos e sociais para as mulheres, ainda é perpetuado o conceito de "normalidade" baseado nos papéis de gênero, mantido por instituições de poder.
É importante destacar que, além da influência das representações de gênero na classificação de comportamentos como normal ou patológico, é necessário considerar as diferenças no sofrimento e impacto das expectativas e cobranças sociais em homens e mulheres. A exigência de perfeição corporal, por exemplo, é um fator influente no maior diagnóstico de transtornos alimentares entre as mulheres. Por outro lado, a prevalência de alcoolismo é maior entre os homens. Em relação ao suicídio, embora mulheres tenham mais tentativas, homens são as principais vítimas de autoextermínio, com quase 80% dos casos, de acordo com a OMS.
Embora tenham havido interferências significativas na forma como a subjetividade e o sofrimento foram compreendidas por diferentes instituições, como a igreja, a medicina e a saúde, a questão de gênero foi ignorada por muito tempo. Trabalhos notáveis, como os de Foucault e Freud, não abordaram a questão do gênero sob a perspectiva da produção social das diferentes exigências, limitações e violências a que cada gênero está sujeito. Somente a partir da década de 1980, com a epidemia da AIDS e o crescente interesse nos estudos de gênero, a relação entre gênero e saúde ganhou destaque nas investigações científicas.
Gênero é um poderoso determinante social que deve ser levado em conta na compreensão da saúde mental. A clínica em Psicologia é uma área crítica de cuidado para o sofrimento, e a incorporação dos estudos de gênero na abordagem teórica e técnica dos psicólogos clínicos pode melhorar a sensibilidade na escuta dos pacientes. Conforme mencionado por Sawaia apud Bicalho (2022), a discussão amplia a capacidade de compreender o "sofrimento ético-político", ou seja, os afetos experimentados pela dor de viver em um ambiente hostil a certas formas de existência. Além disso, a integração dos estudos de gênero ajuda a criar uma clínica mais eficaz, acolhedora e sensível para homens, mulheres, pessoas trans, não binárias, homossexuais e outros grupos que considera as especificidades individuais e reconhece a importância de desenvolver sensibilidade para ouvir o lugar de cada paciente. Isso porque o sofrimento não é gerado pelo fato de habitar um corpo masculino ou feminino, mas sim pelas vivências e expectativas sociais atribuídas a esses corpos devido ao gênero. Masculino e feminino são construções sociais históricas que precisam ser compreendidas além de uma abordagem individual, pois são resultados da ação de dispositivos sociais. Ignorar a perspectiva de gênero na clínica significa negligenciar o impacto desestabilizador das estruturas binárias da sociedade, como papéis, identidade e emocionalidade, na saúde mental das pessoas.
Embora haja avanços no entendimento da relação entre relações de gênero e saúde mental, a aplicação prática desses estudos na clínica psicológica ainda é incipiente. Ainda há muito a se fazer para preencher essa lacuna e expandir possibilidades de oferecer uma clínica efetiva, acolhedora e sensível às diferenças de gênero. É fundamental que a psicologia considere o contexto histórico e cultural de cada indivíduo para exercer um papel de apoio e não de regulação.
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